"Eu penso desta maneira. Pior de como eu estava não pode ficar. No pior dos casos, passarei fome lá como passava em casa. Digo bem? [...] Eu emigro para comer"(testemunho em De Amicis, 1889, 290-1).
Porto de Gênova Fonte: http://www.lodron.net/br/hv.htm |
Na última década
do século XIX, de acordo com Gambini (2006), o embarque no porto de Gênova era mais ou menos assim:
- as pessoas viajavam, mesmo em pleno inverno, vindas de longas distâncias, de carroça, a cavalo, a pé, como fosse possível.
- nas proximidades do velho porto, grupos que se formavam dormiam nas ruas até a hora do embarque, crianças sozinhas, mulheres grávidas ou com bebê no colo, idosos decididos a enfrentar a difícil aventura, com sacolas, um saco de grãos, algumas frutas secas, um queijo, um pão.
Alguns dispunham de
passagem paga pela Sociedade Protetora de Imigração Brasileira, alguns se
arriscavam por conta própria, alguns poucos eram remediados e tinham posses.
O escritor italiano Edmondo De Amicis, em 1889, embarcou no porto de Gênova e fez a viagem dos imigrantes,
publicando logo a seguir o seu relato intitulado Sull'Oceano de 1889.
A
distribuição dos imigrantes pelas três classes do navio reproduzia com exatidão a estrutura social italiana, de acordo com o relato, referido por Gambini (2006):
1) a burguesia proprietária na primeira classe (essa viajava com interesses bem mais assegurados de sucesso, pois trazia capital para investir no Brasil),
Os nossos antepassados italianos durante a travessia. Fonte: Stato Cotidiano
2) o estrato médio (artesãos, pequenos
comerciantes, trabalhadores qualificados, quase já operários) na segunda,
3) e o
campesinato pobre na terceira (campesinato seria o conjunto de agricultores).
A estrutura social italiana, atravessando
intacta o Atlântico, instala-se no Brasil mantendo as mesmas diferenças de
classe da origem. Alguns tinham dinheiro, outros cultura, outros mais,
habilidades e talentos especiais. Mas a grande maioria só sabia mesmo era pegar
no pesado. Alguns logo acharão lugar nas cidades, outros irão para fazendas
recém-abertas, ou mesmo para os descampados paulistas e gaúchos.
De
Amicis era um grande observador, e vale a pena reproduzir algumas das
observações que nos deixou, especialmente no que concerne à mentalidade dos
imigrantes, discutindo no porão da terceira classe, A preciosa frase de um camponês veneto, que em sua
simplicidade resume as razões da imigração:
"Mi razono in sta maniera. Di peggio di come stavo non mi può capitare. Tutt'al più mi toccherà di patir la fame laggiù come la pativo a casa. Digghio ben? [...] Mi emigro per magnar" (De Amicis, 290-1)
Ou seja, a tradução seria:
"Eu penso desta maneira. Pior de como eu estava não pode ficar. No pior dos casos, passarei fome lá como passava em casa. Digo bem? [...] Eu emigro para comer".
"Mi razono in sta maniera. Di peggio di come stavo non mi può capitare. Tutt'al più mi toccherà di patir la fame laggiù come la pativo a casa. Digghio ben? [...] Mi emigro per magnar" (De Amicis, 290-1)
Ou seja, a tradução seria:
"Eu penso desta maneira. Pior de como eu estava não pode ficar. No pior dos casos, passarei fome lá como passava em casa. Digo bem? [...] Eu emigro para comer".
No Brasil, o
regime escravista estava chegando ao fim. Repor mão-de-obra escrava, a partir
de 1880, já não compensava mais.
Até 1902, o governo italiano literalmente fecha os
olhos para o que viesse a acontecer com seus súditos desfavorecidos além das
fronteiras. Que sentimento há de ter alguém que trabalhou a terra até o limite
de suas forças e que, na hora de partir com a trouxa nas costas, só encontra
frieza, abandono e formulários? Aí os corações começam a partir. E a primeira
partição ocorre exatamente no porto de Gênova.
A Itália querida não dirá adeus a
quem embarcar no cais. Depois de 1902, instala-se uma discussão nos jornais,
alegando-se com razão que os imigrantes estão sendo maltratados no Brasil, que
são acometidos por malária, que trabalham num regime de semi-escravidão. Uma
agitação no Congresso nacional dá lugar à criação de uma comissão que se
desloca até o Brasil para investigar as condições reais a que são submetidos os
embarcados pelas companhias de imigração, de que resulta um relatório minucioso
e a aprovação de uma lei que estanca a imigração em 1902. Mas logo em seguida a
lei vira letra morta, e os interesses econômicos multilaterais (governo
italiano, governo brasileiro, bancos e agências de capitalização) novamente
promovem os embarques em massa nos navios que deixam o porto de Gênova. Apesar
do enorme número de italianos que vieram para o Brasil no decorrer de meio
século algo em torno
de dois milhões e meio, nunca houve de fato um bem-elaborado acordo comercial
entre Itália e Brasil, como se estabeleceu com a Alemanha, por exemplo, caso em
que foram estipulados tratamento diferenciado para os produtos comercializados
entre ambos os países, quotas preferenciais, reserva de mercado etc. Nunca
houve nada desse tipo entre a Itália e o Brasil, o que não deixa de estimular
um questionamento dessa dimensão sombria da imigração, esse descuido recíproco
que acabava relegando os imigrantes à própria sorte e às forças atuantes no
mercado de trabalho.
Imigrantes Italianos no Sul do Brasil Fonte:http://www.infoescola.com |
O
sentimento que vem na bagagem seria expresso por algo como: "se amar minha
pátria já não posso, pois tão pouco valor a mim confere, tentarei amar esta
outra, e para esta trarei comigo a que me pertence, e que perdi".
Ocorrerá, portanto, uma transferência de vínculo afetivo, no sentido clássico
que a psicanálise conferiu a esse termo. Imagino o monólogo interior:
"preciso de um solo, de uma plantação, uma vaca, um chiqueiro, árvores,
uma igrejinha, uma festa de San Gennaro, uma polenta e uma tarantella, sem isso
não sei viver! Se não é mais possível aqui, como sempre foi, que então seja em
outro lugar, não importa onde".
No Brasil, o complexo afetivo
será vivido de forma dupla e contraditória: nostalgia pela Itália perdida e
raiva da Itália que expulsava. Concomitantemente, os princípios de um amor pelo
Brasil receptivo logo se fazem acompanhar por um ressentimento pelo país que
obriga a trabalhar duro e passa desdenhosamente a denominar seus novos
moradores de carcamanos. A duplicidade de sentimentos conseqüentemente
localiza-se tanto numa ponta como na outra.
Fonte:
Este post tem trechos do artigo:
GAMBINI, Roberto (2006). Corações partidos no porto de Gênova. Estud. av. [online]. vol.20, n.57, pp. 264-296. ISSN 1806-9592. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142006000200020
Mais leitura:
http://www.statoquotidiano.it/14/05/2015/quando-a-morire-per-mare-erano-i-nostri-emigranti/333118/
GAMBINI, Roberto (2006). Corações partidos no porto de Gênova. Estud. av. [online]. vol.20, n.57, pp. 264-296. ISSN 1806-9592. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142006000200020
Mais leitura:
http://www.statoquotidiano.it/14/05/2015/quando-a-morire-per-mare-erano-i-nostri-emigranti/333118/
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